Resumo: Uma megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, resultou na morte de 121 pessoas, tornando-se o episódio de maior letalidade da história policial do estado. Este artigo analisa criticamente as contradições, os possíveis excessos e as graves consequências humanitárias de uma ação que foi classificada por especialistas como uma "chacina".
Introdução: O Dia do Terror
· No dia 28 de outubro de 2025, uma megaoperação policial batizada de "Operação Contenção" mobilizou 2.500 agentes das polícias Civil e Militar nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro .
· O saldo oficial foi de 121 mortos - incluindo 4 policiais - e 113 presos, superando em mais do que o dobro o recorde anterior da favela do Jacarezinho (28 mortos em 2021) e tornando-se a ação policial mais letal da história do estado do Rio .
· O objetivo declarado era cumprir mandados de prisão contra integrantes do Comando Vermelho (CV), mas o resultado efetivo gerou uma das maiores controvérsias sobre o uso da força pelo Estado na história recente do país.
Metodologia e Limitações
· Esta análise baseia-se em dados oficiais, reportagens jornalísticas, declarações de autoridades e relatos de moradores e especialistas.
· É importante salientar a ausência crucial de imagens das câmeras corporais dos policiais, cujo uso completo não foi devidamente comprovado pelas autoridades, conforme solicitado pelo MPF e pela Defensoria Pública da União .
· A análise dos dados busca as contradições das versões oficiais com outros relatos e evidenciar contradições nos fatos apresentados.
Análise dos Fatos e Contradições
A Dinâmica da Operação e a Estratégia do "Muro do Bope"
· A operação foi planejada durante 60 dias e utilizou uma estratégia conhecida como "Muro do Bope", que consistia em empurrar os suspeitos em direção à área de mata fechada da Serra da Misericórdia .
· Segundo o governo estadual, essa tática teria como objetivo proteger a população civil, concentrando o confronto em uma área não edificada .
· No entanto, especialistas questionam a eficácia e o planejamento dessa estratégia. A professora Jacqueline Muniz, do Departamento de Segurança Pública da UFF, classificou a operação como uma "lambança político-operacional" e destacou que, para mobilizar 2.500 policiais, foi necessário retirar o policiamento de milhões de pessoas na região metropolitana, criando um vazio de segurança em outras áreas .
O Drama dos Corpos: Abandono pelo Estado e Ação dos Moradores
· Um dos episódios mais chocantes ocorreu quando moradores do Complexo da Penha retiraram pelo menos 55 corpos de uma área de mata e os levaram para a Praça São Lucas .
· A polícia alegou que "não sabia da existência" desses corpos, justificando que "quando acontece confronto em uma área de mata, muitos baleados acabam adentrando ainda mais, buscando ajuda, e a gente não consegue atender essa demanda" .
· Crianças e adolescentes participaram dos resgates, conforme mostram imagens que circularam nas redes sociais, onde aparecem com luvas, em cima de picapes, ajudando a transportar os mortos .
· A fundadora do Instituto Fogo Cruzado, Cecília Oliveira, descreveu essas cenas como um "retrato brutal do colapso do Estado" no Rio, afirmando que "quando jovens assumem este papel, fica evidente que o Estado não apenas se ausentou, mas transferiu às vítimas a responsabilidade pela própria sobrevivência" .
A Investigação Contra as Vítimas: A Inversão de Papéis
· Em vez de investigar sua própria conduta, a Polícia Civil abriu inquérito para apurar a retirada dos corpos da mata pelos moradores, acusando-os de "fraude processual" .
· O secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, questionou a forma como os corpos foram apresentados, sugerindo que houve manipulação: "Eles estavam na mata, nós temos imagens deles todos paramentados, com roupas camufladas, com colete balístico, portando essas armas de guerra. Aí apareceram vários deles só de cuecas ou só de shorts, descalços, sem nada. Ou seja, é um milagre que se operou" .
· Essa postura foi criticada por especialistas. O coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública, avaliou que a retirada dos mortos pelos moradores representa um "enorme problema embaraçoso para o governo do Rio de Janeiro porque é impossível que a polícia não soubesse que havia uma quantidade imensa de corpos ali na mata" .
Quem Eram os Mortos? Análise do Perfil das Vítimas
· Dos 117 civis mortos, o governo divulgou os nomes de 99 .
· Dados oficiais revelam que pelo menos 78 tinham "histórico criminal", 42 contavam com mandado de prisão pendente de outros casos, e 30 não tinham passagem pela polícia .
· Um dado crucial: nenhum dos mortos constava na denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro que fez parte do processo que baseou a operação. A denúncia continha os nomes de 69 réus, com mandados de prisão preventiva para 48 pessoas, e nenhuma delas estava entre os mortos .
· Pelo menos 39 mortos eram de outros estados, com destaque para Pará (18), Amazonas (7), Bahia (6), Ceará (4) e Goiás (4), indicando uma possível presença de reforços externos ao Comando Vermelho .
A Reação das Instituições e da Sociedade Civil
· O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) pediram explicações ao governador do Rio sobre a operação, questionando sua alta letalidade e se não havia "meio menos gravoso" de atingir seus objetivos .
· O MPF solicitou ao IML acesso em até 48 horas a todos os dados da perícia dos corpos, com exigências específicas sobre descrição de lesões, identificação de projéteis e exames radiográficos .
· Na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), a presidente da Comissão de Direitos Humanos, Dani Monteiro (Psol), denunciou a lentidão na liberação dos corpos: "A liberação dos corpos é morosa. Os corpos já estão fedendo. Não há geladeiras suficientes" .
· O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Reimon (PT), foi mais contundente: "O governador é um assassino. Essa é a pior chacina do Brasil, superando o que aconteceu no Carandiru" .
Discussão: Entre a "Megaoperação" e a "Chacina"
Disputa Terminológica e Seus Significados
· uma intensa disputa linguística em torno da caracterização dos eventos. Enquanto o governo e as autoridades estaduais se referem ao ocorrido como "megaoperação", movimentos de direitos humanos, especialistas e parcela da mídia classificam o evento como "chacina" .
· Gabriel Nascimento, linguista da Universidade Federal do Sul da Bahia, analisa que "o termo 'operação' é um nome vulgar para designar o exercício do poder soberano entre nós, aquele que decide quem pode morrer e quem pode viver". Já a palavra "chacina" teria vindo de um termo do latim vulgar para carne seca, o que parece "até piada, mas não é. O que vimos no Rio de Janeiro foi pura exploração de carne fresca de gente que foi executada" .
· Essa disputa semântica não é mero academicismo. Como explica Nascimento, "as escolhas linguísticas que os sujeitos fazem de suas palavras geram efeitos de sentido que dão valor simbólico a um fenômeno" .
Eficácia Questionável da Operação
· Especialistas em segurança pública questionam a eficácia da operação. Para o Instituto Fogo Cruzado, "combater o crime organizado exige outra lógica. É preciso atacar fluxos financeiros, investigar lavagem de dinheiro, fortalecer corregedorias independentes e combater a corrupção dentro do Estado. Tudo que o Rio de Janeiro não faz há décadas" .
· O professor José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), foi mais contundente: "Isso tudo que vocês estão vendo aí hoje, arrebentando no Rio de Janeiro todo, é apenas uma imensa e gigantesca cortina de fumaça" .
· A operação cumpriu apenas 20 dos "mais de cem" mandados de prisão expedidos. Os outros 93 detidos foram presos em flagrante . O principal alvo, Edgar Alves de Andrade, o "Doca", apontado como integrante da cúpula do Comando Vermelho, conseguiu escapar do cerco policial .
O Contexto de Expansão do Crime Organizado
· A operação ocorreu em um contexto específico de expansão territorial do Comando Vermelho. Segundo pesquisa divulgada em 2024 pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF e pelo Instituto Fogo Cruzado, o CV foi a única facção criminosa a expandir seu controle territorial de 2022 para 2023, no Grande Rio, com aumento de 8,4% .
· Com esse crescimento, a organização ultrapassou as milícias e passou a responder por 51,9% das áreas controladas por criminosos na região .
· Este contexto explica a justificativa oficial para a operação, mas não necessariamente justifica os métodos utilizados e sua altíssima letalidade.
Conclusão: O Preço da "Guerra" e a Banalização da Vida
· A megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha representa um marco trágico na história da segurança pública do Rio de Janeiro e do Brasil. Com 121 mortos, superou o massacre do Carandiru em número de vítimas e expôs a crueza de uma política de segurança que privilegia o confronto armado em detrimento de estratégias inteligentes e sustentáveis.
· As contradições na narrativa oficial - o abandono dos corpos, a investigação contra moradores, a falta de transparência com as câmeras, o perfil das vítimas que não correspondiam aos alvos originais - apontam para graves violações de direitos humanos e possíveis execuções sumárias.
· A naturalização desse nível de violência por parte do Estado, com a justificativa de combate ao crime organizado, consolida o que o filósofo Achille Mbembe chamou de "necropolítica" - a prática pelo qual Estados modernos decidem quem deve viver e quem deve morrer .
· Enquanto o governo comemora a apreensão de armas e a morte de "criminosos", crianças carregam corpos em picapes, mães choram seus filhos não identificados no IML e uma geração inteira cresce traumatizada pela violência de Estado. O verdadeiro custo dessa operação não pode ser medido apenas em números, mas na degradação da democracia e na banalização da vida humana na periferia.
"Nosso papel é não naturalizar a barbárie. Não foi só uma megaoperação, mas uma chacina. Se há tráfico e organizações criminosas, isso é por ausência do Estado." - Dani Monteiro, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj .